ARTIGO: SISTEMA JURÍDICO NACIONAL – O ADVOGADO, O JUIZ E O PROMOTOR

Joaquim de Campos Martins*

O mundo jurídico contemporâneo ainda faz confusão acerca da inexistência de hierarquia ou subordinação entre o advogado, o juiz e o promotor, no exercício de suas atribuições. Isso acontece, na maioria das vezes, devido ao tratamento inadequado dispensado ao advogado por alguns juízes esquecidos da sua real colocação constitucional entre os Poderes, em conseqüência dos arroubos exacerbados da arrogância e da vaidade pessoal.

Entretanto, embora a figura central de todo o sistema de distribuição da justiça seja o Juiz, tal atividade jurisdicional, via de regra, não prescinde da participação efetiva do advogado, tendo em vista o princípio da inércia que caracteriza a jurisdição, segundo o qual o Judiciário não dispõe de iniciativa própria para prestá-la, atuando, normalmente, mediante provocação.

Além disso, salvo raríssimas exceções, a capacidade postulatória, definida como a aptidão técnica para postular em juízo, é prerrogativa exclusiva do advogado, assim considerado o bacharel em direito com inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, após aprovação no Exame de Ordem.

Com efeito, a Constituição da República Federativa do Brasil consagra a garantia dessa capacidade, no capítulo das Funções Essenciais à Justiça, como se infere do Título IV, Capítulo IV, Seção I: Do Ministério Público (arts. 127/130), Seção II: Da Advocacia Pública (arts. 131/132) e Seção III: Da Advocacia e da Defensoria Pública (arts. 133/135). Portanto, de acordo com a Lei Maior, todo aquele que não possuir capacidade postulatória (com exceção das causas dos juizados especiais cíveis, observado o valor de alçada; das ações trabalhistas, quando empregado; das ações penais privadas exclusivas e do habeas corpus) deve se fazer representar em juízo por um advogado, lembrando que, em se tratando de direitos coletivos, difusos ou individuais homogêneos de natureza indisponível, a atribuição compete ao Ministério Público na tutela desses direitos.

Ademais, com a Magna Carta de 1988 o advogado passou a ser reconhecido como indispensável à administração da Justiça, sendo que no seu ministério privado exerce função social e presta serviço público relevante, e no processo judicial colabora na postulação de decisão favorável ao seu constituinte e ao convencimento do julgador, consistindo os seus atos num verdadeiro múnus público (art. 133 da CF c/c o art. 2º, §§ 1º, 2º e 3°, da Lei nº 8.906/94 (EAOAB).

Dito isso, pode-se afirmar, com absoluta segurança, que a atividade jurisdicional não pode abstrair da efetiva participação do Advogado e do Ministério Público, bem como que a administração da Justiça é necessariamente compartilhada com ambos, sendo correto dizer que essa participação e esse compartilhamento não violam quaisquer preceitos normativos, pelo contrário, integram o perfil constitucional da autonomia e independência do Poder Judiciário.

Por consequência, sem sombra de dúvida, o advogado atualmente se encontra inserido, por força de lei, no mesmo nível hierárquico dos integrantes do Poder Judiciário, no seu dia-a-dia forense. Assim sendo, deve se relacionar de modo cordial e respeitoso com todos os outros participantes da atividade judiciária (juízes, promotores, procuradores, defensores e serventuários da Justiça). Contudo, a recíproca é igualmente verdadeira, isto é, todos o devem tratar com a mesma cordialidade, urbanidade e respeito, sendo certo que se o magistrado e os demais operadores do direito faltarem-lhe com o respeito devido, estarão ignorando a isonomia constitucional existente entre eles durante a tramitação processual, em violação frontal à legislação pertinente.

Nesse diapasão, reza o artigo 6º do EAOAB, in litteris: “Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos. Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho.”

Essa delineação de garantia se denomina imunidade profissional ou judiciária, extremamente necessária à própria função jurisdicional, uma vez que não interessa ao Estado o exercício de uma advocacia frágil, com medo de desagradar, temores e submissão aos demais operadores jurídicos ou a quem quer que seja, porquanto eventual atitude covarde do advogado põe em perigo o próprio sistema democrático e de garantias constitucionais, haja vista que na Justiça se discute com razão e bastante emoção conceitos e valores diversos constantes no ordenamento jurídico pátrio, sendo inteiramente natural num cenário desse jaez que os debates realizados sejam vibrantes e produtivos, como é da própria natureza humana, o que somente é possível com ousadia e liberdade de expressão.

A advocacia, portanto, deve ser exercida com urbanidade, mas também com dignidade, intrepidez e altivez, não se deixando abalar por ninguém, pois, advocacia forte é uma garantia para todos, principalmente para aqueles que necessitam da tutela jurisdicional.

Em verdade, a divisão de tarefas e de funções na máquina judiciária não implica em submissão ou subordinação. Logo, não existe nem deve existir hierarquia, tampouco temor reverencial entre advogados, magistrados, promotores, procuradores e defensores públicos, não havendo que se falar em qualquer elo subordinativo entre eles. E, por serem elementos importantes na magnitude do seu campo de atuação, devem se tratar com cordialidade e urbanidade, merecendo respeito mútuo e tratamento recíproco adequado. Ao juiz deve ser dado o tratamento de Meritíssimo ou Excelência; ao advogado o título de Doutor, não só por tradição, mas também em razão da Lei Imperial de 11 de agosto de 1827, que lhe conferiu o título (grau) de Doutor e, como é cediço, se encontra em pleno vigor; ao promotor ou procurador de justiça dá-se também o tratamento de Excelência. Todos, na verdade, para melhor harmonia, devem receber, entre si, o tratamento cordial de Doutor (Doutores da Lei) por tradição histórica e ensinamento bíblico.

No entanto, em virtude de uma doença grave e crônica conhecida no jargão forense por “juizite”, que acomete pequena parte do judiciário, a coisa não ocorre bem assim. Explicando melhor: utilizando-se do sufixo “ite”, em linguagem médica, podemos afirmar, consoante dito alhures, que se trata de uma enfermidade, ou seja, de uma inflamação no ego de alguns indivíduos extremamente vaidosos, de pouca educação e muita arrogância, que passam a ocupar o cargo de juiz de direito. Por conseguinte, não se trata de um mal

inerente à função, pois a ela é preexistente, sendo que o fator influente para o desdobramento evolutivo patogênico seria o poder (verdadeiro ou fictício) que o “doente” tem (ou imagina ter), passando a agir com um

pernosticismo sem-par, olvidando-se de que também é um bacharel em direito, ou que já fora advogado e que, naquela situação, muitas vezes desejou ser bem tratado pelos juizes e promotores, ou que, num futuro próximo, pretende trocar a toga pela beca ao se aposentar.

Não cabe aqui mencionar, um a um, todos os sintomas típicos dessa moléstia, já que os mais acentuados são do conhecimento pleno dos operadores públicos da justiça, devendo-se ressaltar, contudo, que a “juizite” já fora reconhecida inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, quando um dos seus presidentes, falando sobre a morosidade da Justiça¹, asseverou que “O Judiciário tem diversos defeitos, como a juizite, doença que acomete principalmente os magistrados mais novos. Eles chegam cheios de vontade, achando-se super-homens. Muitas vezes tomam decisões exóticas, que acabam reformadas.”

Vê-se, desse modo, que a Suprema Corte de Justiça reconheceu explicitamente a existência da “juizite” nas entranhas do Poder Judiciário, não descartando a hipótese de incidência em todos os graus de jurisdição, considerando que o substantivo magistrado não se refere apenas a juiz de primeiro grau, mas também a desembargador e ministro.

Apenas para se ter uma idéia da gravidade do tema, vale relembrar casos não muito remotos, noticiados pela mídia, em que portadores dessa virose, de maneira insólita e sem a preocupação necessária com a nobre função pública que ocupam, em meio à discussão das causas durante a realização de audiências ou sessões, violando frontalmente o EAOAB, ordenam que o causídico se mantenha sentado no momento das suas sustentações orais, chegando até a cometerem outros excessos contra advogados que, na defesa dos direitos de seus constituintes, praticam atos albergados pelo princípio da imunidade judiciária previsto na Constituição Federal, que nada mais é senão a garantia da liberdade de expressão do profissional, em visível cometimento de abuso de autoridade.

É bom salientar, en passant, que a situação melhorou bastante após a reforma do Poder Judiciário pela Emenda Constitucional nº 45/04, com a criação do Conselho Nacional de Justiça. Porém, conforme afirmou recentemente a atual corregedora desse órgão fiscalizador, Ministra Eliana Calmon², a doença ainda não acabou.
“Nós, magistrados, temos tendência a ficar prepotentes e vaidosos. Isso faz com que o juiz se ache um super-homem decidindo a vida alheia. Nossa roupa tem renda, botão, cinturão, fivela, uma mangona, uma camisa por dentro com gola de ponta virada. Não pode. Essas togas, essas vestes talares, essa prática de entrar em fila indiana, tudo isso faz com que a gente fique cada vez mais inflado. Precisamos ter cuidado para ter práticas de humildade dentro do judiciário. É preciso acabar com essa doença que é a ‘juizite’.”

Nesse contexto, para louvor da Deusa Themis, tal enfermidade, tem baixa incidência no meio judicial atualmente. Apenas uma pequena minoria se deixa contaminar por ela, visto que os grandes cérebros da magistratura nacional encontram-se imunizados. Todavia, lamentavelmente, ainda existe e necessita ser banida, antes que outros agentes públicos, não imunizados, também sejam contaminados, pois já se fala inclusive em “promotorite”, e até mesmo em “assessorite”, que seria a síndrome do assessor ou diretor que se acha mais importante do que partes e causídicos.

Cabe recordar alguns dos conselhos extraídos do discurso do então Desembargador Getúlio Vargas de Moraes Oliveira em saudação aos novos juízes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, na solenidade de posse realizada em 9 de março de 2001³, in verbis:
“Zelem ciosamente pela sua reputação na vida pública e na vida privada. Os senhores não são representantes do Poder Judiciário, são o próprio Poder Judiciário. O juiz é a justiça andando, como já se observou. Sejam humildes. A magistratura é carreira vulnerável ao exercício da arrogância. Nunca levantem a voz, não gritem. Tenham o senso da medida nas palavras e nos atos. Mantenham com os Advogados e Membros do Ministério Público relações de respeito e urbanidade. Nunca cerrem a porta de seus gabinetes aos advogados, pois ali é a terra onde medram as teses que semeiam.”

Vejo como louváveis as palavras do ilustre Desembargador. Em verdade, a Magistratura constitui um verdadeiro sacerdócio para o qual se impõem severas limitações e restrições e só consegue exercê-la quem tem realmente vocação e paixão pelo cargo.

Nessa ordem de idéias, é bom lembrar que a profissão de advogado, ao lado do magistrado e do promotor, é uma das mais belas do mundo. O advogado é um parceiro do juiz e do promotor de justiça, é um dos protagonistas no processo e no lavor de se outorgar uma boa prestação jurisdicional. Consequentemente, não são inimigos, mas sim parceiros irmanados para real distribuição da justiça, como ocorre nos principais países europeus, a exemplo de Portugal e Roma, nos quais o direito brasileiro tem, respectivamente, as suas raízes e influências históricas.
Finalizando, cumpre invocar a célebre lição do saudoso mestre italiano Piero Calamandrei, in verbis:

“Num regime em que, como em nosso país, o advogado se considera investido de uma função pública, advogados e juízes são colocados moralmente, ainda que não materialmente, no mesmo plano. O juiz que falta ao respeito para com o advogado e, também, o advogado que não tem deferência para com o juiz, ignoram que advocacia e magistratura obedecem à lei dos vasos comunicantes: não se pode baixar o nível de uma, sem que o nível da outra desça na mesma medida.”

Ante o exposto, a solução para o problema seria a autoconscientização dos próprios portadores desse mal, com mudanças radicais de conceitos e comportamentos pessoais que permitam a sua completa extinção do sistema jurídico nacional, para que tenhamos a perspectiva de uma Justiça mais harmônica, dinâmica e eficaz.

NOTAS
1. Entrevista concedida à Revista Veja nº 35, de 03 de setembro de 2003.
2. Em entrevista à Revista Veja, edição 2184 – ano 43 – nº 39, de 29 de setembro de 2010.
3. O texto integral foi publicado na Revista de Doutrina e Jurisprudência do TJDFT nº 65/2001, p. 102/105.
4. Extraída do livro “Eles, Os Juízes, Vistos Por Um Advogado”. Editora Martins Fontes. São Paulo. 1996, pág. 55

*Joaquim de Campos Martins é Advogado. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); Pós-Graduado pela Escola da Magistratura do DF; Autor do livro Manual da Legislação Específica do TJDFT e de artigos jurídicos publicados em jornais, revistas e informativos especializados.