Por: Christiane Pantoja
Sócia do escritório Siqueira Castro – Advogados em Brasília
Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB/DF
Premissa do modelo democrático é o atendimento ao princípio da separação dos poderes, insculpido na Constituição Federal, e a conseqüente inexistência de autoritarismo por parte de qualquer das instituições que compõem o tripé democrático. Nesse contexto situa-se a suposta crise de legitimidade do Supremo Tribunal Federal diante de decisões de cunho político que ultrapassariam sua esfera de poder e ingressariam no âmbito do poder legiferante.
Os supostos desvios institucionais praticados pelo Poder Judiciário, em especial pelo Supremo Tribunal Federal, têm origem na sabida falta de legitimidade democrática e atuação efetiva dos demais atores do Estado brasileiro, os Poderes Legislativo e Executivo.
As razões à falta de representatividade dos políticos brasileiros encontram-se no denominado Presidencialismo de coalizão que afasta do legislativo a execução das metas ou programas partidários para o alcance de uma maioria que sustente o governo no parlamento. A coalizão, portanto, afasta o legislador da necessária representatividade popular e centra-se em viabilizar os acordos entre partidos, normalmente com a ocupação de cargos no Poder Executivo. A conclusão inafastável é a inexistência de representação efetiva do cidadão no Parlamento para consecução dos objetivos sociais da República, donde o evidente crescimento da atuação do Supremo Tribunal Federal para o alcance dessas metas.
E o Judiciário aparece mediante a prestação jurisdicional para atendimento de demandas de grupos em sede de controle de constitucionalidade de forma a oferecer ao jurisdicionado, em especial às minorias, as respostas a pleitos sociais legítimos não atendidos ou violados pelos demais poderes da República.
Nas palavras do professor Lenio Luiz Streck, “assim como a Presidência da República tem de atender aos pleitos dos partidos, o STF, durante esses mais de vinte anos, acabou por engendrar uma espécie de ‘julgamentos políticos’. Assim,
– o “partido” das nações indígenas foi até o STF e teve suas demandas atendidas;
– o “partido” das cotas queria legitimar as cotas, e deu certo;
– o “partido” das uniões homoafetivas queria que o STF dissesse que união estável era equiparável a casamento, e obteve êxito;
– o “partido” das causas feministas, entre outras coisas, buscou retirar da mulher vitimada por maus tratos a titularidade da representação, e igualmente se saiu bem;
– o “partido” das questões ligadas aos embriões e células tronco, idem;
– o “partido” dos governadores (questões envolvendo guerra fiscal etc.) bateu às portas do STF uma infinidade de vezes;
– o “partido” das reivindicações de prestação de saúde via judicialização também alcançou seu desiderato;
– o “partido” da moralização das eleições foi pressionar para que o STF considerasse constitucional a Lei da Ficha Limpa;
– até mesmo o “partido” do parlamento saiu-se bem, pois, mesmo sem obedecer à Constituição, conseguiu validar quase 500 medidas provisórias graças a uma modulação de efeitos concedida pelo STF.” (1)
Trata-se do fenômeno do ativismo judicial que enseja episódios de grave tensão político-institucional, em especial entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, diante da suposta ingerência do último nas competências do primeiro.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou o mandado de segurança 32.033/DF, da relatoria do Ministro e professor Gilmar Mendes, impetrado contra o Projeto de Lei 4.470/2012, do Senado Federal, que, ao estabelecer que a migração partidária que ocorrer durante a legislatura não importará na transferência dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral, acabou por restringir a criação de novos partidos políticos. (2)
Cerne da discussão no âmbito da Corte foi acerca da possibilidade de interferência da jurisdição constitucional no processo legislativo do parlamento.
Prevaleceu, por maioria, o entendimento anteriormente manifestado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido da viabilidade jurídica de paralisação do processo legislativo apenas e tão-somente quando violadas as disposições constitucionais acerca da tramitação processual. Não é possível à Corte analisar a constitucionalidade do mérito, do conteúdo, da proposição legislativa, mesmo que o entenda violador de cláusula pétrea, sob pena de malferimento do princípio da separação dos poderes. Também, o controle prévio ou preventivo de constitucionalidade de projeto de lei deve ser exercido pelo próprio Legislativo e pelo Executivo, nos termos da Constituição Federal.
A resposta do Poder Legislativo ao crescimento da atuação do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, efetiva-se mediante elaboração de normativas tendentes ao controle desse suposto ativismo judicial, como é o caso da Proposta de Emenda Constitucional 33/2011 – PEC 33, já aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. (3)
Essa proposta de emenda constitucional altera a quantidade mínima de votos de membros de tribunais para declaração de inconstitucionalidade de leis, condiciona o efeito vinculante de súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal à aprovação pelo Poder Legislativo e submete ao Congresso Nacional a decisão sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição.
Sem adentrar no mérito de cada uma das alterações constitucionais pretendidas pela proposta de emenda constitucional 33/2011, interessa ao presente estudo a análise da constitucionalidade da vontade legislativa – mediante constituinte derivado, de alterar o arranjo originário de controle de constitucionalidade previsto na Constituição Federal. Há violação à separação dos poderes inerente ao Estado Democrático de Direito?
Renomados doutrinadores escreveram sobre a matéria. Não há consenso porque o tema perpassa a própria legitimidade do Poder Legislativo diante da falência da real representatividade dos eleitores. Inexistente fosse a ineficácia legislativa ao atendimento das demandas sociais, a PEC 33/2011 teria sem dúvida mais consenso de constitucionalidade. Ocorre que esse não é o caso brasileiro.
O caso brasileiro é de momento histórico de crise do próprio sistema democrático que levou às ruas milhares de cidadãos inconformados com o descaso da classe política.
Os movimentos sociais dos últimos dias demonstram a absoluta falta de credibilidade que o cidadão brasileiro deposita nos representantes do parlamento e do executivo. Daí que a possibilidade de controle pelo Poder Legislativo das decisões do Supremo Tribunal Federal tomadas em sede de controle de constitucionalidade (PEC 33/2011) enseja acirradas reações públicas no sentido da sua inconstitucionalidade, tudo porque permite aos políticos formalmente representativos do povo, mas materialmente em descrédito, adentrar no controle da jurisdição constitucional exercida pelo Poder Judiciário, que detém mais credibilidade por responder às demandas sociais reprimidas no Parlamento e também no Executivo.
No cerne deste ambiente de conturbação sistêmica, está perplexo o mundo jurídico por acordar de uma ilusória maturidade democrática com a missão de encontrar soluções criativas e responsáveis para uma resposta eficaz e constitucional aos anseios populares. Certamente, essas soluções acabarão por desaguar no Supremo Tribunal Federal para análise da respectiva constitucionalidade. Aqui, justo o ativismo.
Diversas foram as saídas políticas e jurídicas apresentadas pela chefe do Poder Executivo Federal, inclusive a realização de uma “constituinte exclusiva” à reforma política que acabou afastada diante do entendimento quase uníssono de inconstitucionalidade.
Outra solução apresentada é a realização de plebiscito para o alcance da vontade popular acerca do sistema político brasileiro. Em que pese o ganho da participação popular no processo legislativo de reforma política que a proposta plebiscitária pretende, não se pode descuidar que a complexidade da matéria poderá ensejar dificuldade na sua concretude.
Caso, todavia, a proposta de plebiscito seja efetivada, será obrigatória a inclusão pelos parlamentares dos resultados das respostas populares na nova normativa acerca do sistema político brasileiro. Não se trata de mera consulta à sociedade civil.
Parece óbvio que a caracterização de simples consulta sem a necessária força compulsória aos parlamentares do que for decidido em sede de plebiscito poderá ensejar o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal contra as normas de reforma política diante da evidente violação do princípio mais fundamental do Estado Democrático de Direito, que legitimou e permitiu a própria existência dos Poderes da República quando da Constituinte Originária, o princípio da soberania popular. Afinal, estabelece o parágrafo único do art. 1º, da Constituição Federal, que todo o poder emana do povo.
A atuação do Supremo Tribunal Federal – da jurisdição constitucional, será, portanto, essencial à consolidação definitiva da vontade popular na construção de bases mais sólidas à democracia brasileira.
Nas palavras do professor Luis Roberto Barroso, “democracia significa soberania popular, governo representativo, vontade da maioria. Da soma dos dois surge o arranjo institucional que proporciona o governo do povo, assegurados os direitos fundamentais de todos e as regras do jogo democrático.”(4)
De somenos importância que o julgamento venha a ser político. O entendimento do fenômeno jurídico há muito deixou a frieza do formalismo clássico e permitiu-se o contágio do componente político no momento da interpretação jurídica efetivada nas decisões judiciais, em especial no âmbito da jurisdição constitucional.
O importante é que o Supremo Tribunal Federal garanta, com ativismo judicial mesmo, a higidez da Constituição Federal e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito no Brasil.
Bibliografia Consultada
(1) STRECK, Lenio Luiz. Democracia, Jurisdição Constitucional e Presidencialismo de Coalisão. Observatório da Jurisdição Constitucional. Ano. 6, vol. 1, mai./2013. ISSN 1982-4564.
(2) In: HTTP://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MS_32033.pdf
(3) In: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD26MAI2011.pdf#page=212, p. 2612. Acesso em 25.04.2013.
(4) In: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/115886-bem-justica-e-tolerancia.shtml
SILVA, Paulo Virgílio Afonso. Disponível em http://www.conjur.com.br/2013-jun-13/virgilio-afonso-silva-professor-usp-comenta-pec-33-embate-poderes. Acesso em 20.06.2013.
BERCOVICI, Gilberto. BARRETO LIMA, Martonio Mont’Alverne. Judiciário e STF não só podem, como devem ser controlados. Disponível em http://www.viomundo.com.br/politica/bercovici-e-barreto-lima.html. Acesso em: 20.06.2013.