Parece-me que não é apenas a coluna vertebral do senhor ministro Joaquim Barbosa que anda doente. Outras colunas vertebrais também estão enfermas no Supremo Tribunal Federal de hoje. As colunas da democracia; dos direitos humanos e das prerrogativas dos advogados também estão machucadas.
Em nome e em homenagem a uma pretensa agilidade processual, o senhor ministro Cesar Peluso, com todo o respeito devido, atropela direitos fundamentais, agride a advocacia brasileira e sustenta posições ditatoriais e arbitrárias em tempos de propalada democracia.
Após diversos apelos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mantém o senhor ministro Cesar Peluso o impedimento de recebimento de Habeas Corpus impetrados por advogados em favor dos seus pacientes no Supremo Tribunal Federal, exceto se ali requeridos exclusivamente por meio eletrônico ou pela pessoa do próprio paciente, sem assistência de advogado.
Considerando que no Brasil existem 700 mil advogados e que tão somente um número inferior a 10 mil estão habilitados ao requerimento por meio eletrônico, significa dizer que tal posicionamento impede que em torno de 690 mil advogados levem à Suprema Corte seus Habeas Corpus.
Isto, receio, parece ser para afastar ou ao menos dificultar a presença da advocacia brasileira naquela corte. Tal posicionamento inflexível é extremamente ofensivo às prerrogativas dos advogados e atenta inegavelmente contra os direitos da pessoa humana, pois tais Habeas Corpus impetrados por advogados não são recebidos fisicamente mesmo quando requeridos em favor de pacientes presos e encarcerados. Isso é desumano. Extremamente desumano.
Por sua vez, sua excelência o senhor ministro Peluso não esconde pretender um CNJ mais submisso, brando, com menor poder de punição de alguns magistrados que saem da linha. Nesse aspecto trava uma queda de braço com a eminente ministra corregedora nacional, Eliana Calmon, que não tem poupado esforços para submeter magistrados de todo o país aos ditames da lei, da moral, da ética e da disciplina, quando e onde necessária se faz sua intervenção.
E agora, como se a pretender provocar mais uma vez a advocacia brasileira, pois no momento em que esta encontrava-se reunida em sessão plenária do Conselho Federal da OAB, para lançamento do Movimento em Defesa do CNJ, onde convidada a se fazer presente a senhora ministra Eliana Calmon, o senhor ministro Peluso se fez ouvir apresentando seu texto de Projeto de Emenda Constitucional (PEC), em que agora também pretende já ver executadas todas as sentenças, inclusive aquelas proferidas em processos criminais, após sua confirmação por uma única instância recursal.
Em matéria criminal, essa iniciativa se constitui em mais um atentado aos direitos humanos, na medida em que nossos presídios – verdadeiros depósitos de presos – estarão abarrotados de presos “temporários”, ali encarcerados “provisoriamente”, até que instância recursal superior os declare, definitivamente, inocentes.
Que se construa, então, em todo o país, dezenas de novos presídios para atender os possíveis e prováveis encarcerados provisórios inocentes que surgirão. Em vez dos conhecidos Bangu I, II e III, teremos agora os Presídios Provisórios dos Inocentes (PPI) I, II, III, etc.
Serão milhares de presos em resposta à primeira confirmação de uma sentença criminal condenatória e serão outros milhares de presos soltos quando as instâncias superiores os declararem, finalmente, inocentes; ineptas as denúncias; nulas as sentenças; prescritas as pretensões punitivas e reduzidas as penas a patamares não condizentes com o encarceramento.
E quem atua na área criminal, juízes, promotores, advogados e defensores públicos sabem muito bem que o número de casos de absolvição, redução drástica das penas, decretos de nulidade de sentenças, trancamento de ações penais diversas por Habeas Corpus nas instâncias superiores – STJ e STF – é enorme. E como ficarão, então, os presos, aos montes, quando reconhecidamente inocentes após o encarceramento? Terão o rótulo de uma nova classe social? Serão os ex-presidiários inocentes? EPIs?
E fiquem certo que os inocentes ficarão presos e encarcerados por muito tempo, pois pode até parecer masoquismo, mas o certo é que os recursos para as instâncias superiores, pelo projeto do senhor ministro Peluso, poderão continuar a ser manejados, ou seja, poderão continuar abarrotando os tribunais superiores, contudo, com uma grande e essencial diferença, ou seja, a presunção não será mais a da inocência até o trânsito em julgado, e sim a da culpa com encarceramento antecipado antes do último julgado, que poderá ser o de reconhecimento tardio da inocência e consequente absolvição. Assim, o projeto do senhor ministro Peluso traz apenas uma inversão de valores, humanos.
O senhor ministro Peluso, para assim propor, o fez na presunção equivocada de que os juízes de primeira instância são infalíveis em suas sentenças criminais e que tais veredictos de primeiro grau serão examinados, relatados e julgados sempre em ambientes tranquilos de esfera recursal, por desembargadores com bastante tempo ao minucioso exame do processo e não muitas vezes em sistema de mutirão, apenas por juízes também de primeiro grau, convocados, ou até por assessores, mal ou bem preparados, conhecedores ou não de processos criminais e do Direito Penal. Esse projeto não se presta para atingir o objetivo anunciado por sua excelência. O problema não concentra-se nos recursos, e sim na má gestão do próprio Judiciário.
Não temos juízes em milhares de comarcas; em milhares de casos temos um só magistrado atendendo, sozinho, em mais de uma comarca; incontáveis juízes que só trabalham terça, quarta e quinta; juízes que não produzem e não são punidos; juízes por aí mal remunerados; comarcas sem estrutura mínima de pessoal e equipamentos; tribunais de apelação abarrotados por ausência de pessoal, magistrados e estrutura suficientes; burocracia por vezes estúpida e desnecessária; gastos excessivos em supérfluos; prédios palacianos; carros de luxo; corredores pouco movimentados que mais parecem pistas de skates e patins; plenários suntuosos; ares imperiais; uma Justiça atrasada e distante do seu povo e de seus anseios.
Disso é que deveria tratar o senhor ministro Peluso e não propor a correção da má gestão do Judiciário levando ao cárcere, precocemente, muitas pessoas inocentes antes de assim declaradas em nome de uma agilidade processual que, sabe-se de antemão, que não será alcançada com iniciativas do tipo.
Délio Lins e Silva é Conselheiro Federal da OAB