A POLÊMICA DO QUÓRUM NAS DECISÕES DO STF

Um dos temas que tem surgido no noticiário jurídico brasileiro é o problema de quórum do Supremo Tribunal Federal para deliberação de questões constitucionais que ensejam uma maioria qualificada. Nos Estados Unidos a previsão de quórum para os julgamentos da Suprema Corte não está na Constituição, mas no regimento da Corte. É que os juristas americanos entendem que inserir na Constituição dispositivos relativos ao quórum necessário para deliberação da Suprema Corte poderia resultar num engessamento para os trabalhos judiciários. Coube à jurisprudência norte-americana construir raciocínio segundo o qual só se deveria decidir se uma lei é inconstitucional pela maioria dos integrantes da Corte. Essa orientação ganhou o nome de full bench.

Há situações curiosas nas quais não foi possível formar a maioria necessária para a deliberação constitucional. Ao apreciar o caso Hepburn v. Griswold, (1870) e Illinois Cent. R. Co. v. State of Illinois (1892) a Corte estava desfalcada. É que o Chief Justice Edward Douglass White havia participado do julgamento na instância ordinária e o Justice Samuel Blatchford tivera ligações profissionais com a companhia autora da ação. O jeito foi declarar a inconstitucionalidade do ato questionado valendo-se do voto de somente quatro justices, dentre os nove que compunham a Corte. Vejam que não houve maioria formada e mesmo assim o ato foi declarado inconstitucional.

O ideal é que todos os julgamentos de uma Suprema Corte ocorram com a presença da totalidade dos seus membros. Mas nem sempre isso é possível. Basta lembrar o clássico caso Marbury v. Madson (1803), que estabeleceu a possibilidade de o Judiciário declarar uma lei inconstitucional. Esse precedente foi firmado por quatro votos, quando a Corte era composta por seis justices. O tribunal não estava completo quando julgou o mais importante caso da história do controle de constitucionalidade do mundo. Atualmente o quórum para abertura da sessão da Suprema Corte nos Estados Unidos é de seis justices sendo, o tribunal, formado por nove justices. No Brasil, o STF funciona tendo de respeitar dois tipos de quórum. O primeiro tipo é o “quórum de sessão” e o segundo, o “quórum de julgamento”.

O quórum de julgamento tem previsão constitucional no artigo 97 que diz que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros” o STF pode declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público. Já o quórum de sessão tem previsão regimental e legal. Ele é previsto no parágrafo único do artigo 143 do Regimento Interno do STF que diz que o quórum para votação de matéria constitucional é de oito ministros. A Lei 9.868/99 dispõe, no seu artigo 22, que “a decisão sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo somente será tomada se presentes na sessão pelo menos oito ministros”. A Lei 9.882/99, em seu artigo 8º, diz que a decisão sobre Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos ministros (oito).

Frise-se que, em caso de não haver quórum para a instalação da sessão de julgamento de processo que trate de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, não será declarada prejudicada a ação. O que se faz é adiar o julgamento para que ele seja procedido quando houver quórum na sessão.
Do mesmo modo, uma vez iniciado o julgamento, mas tendo caído o quórum em razão da saída de ministros durante a sessão de modo que não mais haja no plenário número suficiente para a apreciação da ação, o julgamento será suspenso e retomado com o quórum suficiente à apreciação da demanda.

Durante o julgamento da ADPF 46, que debatia o monopólio postal exercido pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT), a Corte se deparou com um placar de 5 x 5. O voto que faltava, do saudoso ministro Menezes Direito, não ocorreria, uma vez que Sua Excelência havia se declarado suspeito. Assim sendo, a Corte não tinha um resultado a dar, pois, para uma ou outra corrente precisaria de, pelo menos, seis votos.

Em razão disso o ministro Cezar Peluso registrou: “É nesse sentido que proponho ao tribunal proclamar o resultado do julgamento: não tendo sido obtido o quórum especial para a pronúncia de incompatibilidade ou pronúncia de revogação, o diploma normativo subsiste”. Depois da proposta, houve a evolução de um voto e foi possível alcançar os necessários seis votos para uma dada posição.
Após essa situação, o STF realizou uma sessão administrativa dia 2 de dezembro de 2009 e aprovou a Emenda Regimental 35, introduzindo um conjunto de medidas destinadas a evitar que a Suprema Corte se depare com esses embaraços institucionais.

O artigo 13, IX, instituiu o chamado voto de qualidade para o presidente da Corte. Cabe-lhe proferir voto de qualidade nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de ministro em virtude de: a) impedimento ou suspeição; b) vaga ou licença médica superior a 30 (trinta) dias, quando seja urgente a matéria e não se possa convocar o ministro licenciado.

Também foi modificado o artigo 40, passando a dispor que o presidente do STF convocará ministro licenciado para completar quorum no Plenário, em razão de impedimento ou licença superior a 30 dias. Foi o que aconteceu recentemente, no dia 4 de agosto de 2010. Um empate por 5 x 5 determinou a suspensão do julgamento, pelo Plenário, do RE 564.413/SC, com repercussão geral admitida, em que se discutia a imunidade — ou não — das receitas com exportações à incidência da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL).

O ministro Joaquim Barbosa, que deveria desempatar o caso, estava de licença-médica. O ministro Cezar Peluso, presidente da Corte, informou que o ministro Joaquim interromperia, na semana seguinte, sua licença para tratamento de saúde para participar de votações no Plenário e desempatar a questão. Assim foi feito.
A Emenda Regimental alterou, ainda, o artigo 146 para que, havendo empate na votação de matéria cuja solução dependa de maioria absoluta, a questão seja considerada julgada, proclamando-se a solução contrária à pretendida ou à proposta.

Por fim, o parágrafo único do artigo 146 dispõe que, no julgamento de habeas corpus e de recursos em habeas corpus, em caso de empate, será proclamada a decisão mais favorável ao paciente. Aqui, foi retirada a restrição anteriormente prevista de que “o presidente não terá voto”. Agora o presidente pode votar. Sabemos que o exercício do controle de constitucionalidade das leis depende da votação da maioria absoluta do STF, logo, podemos dizer que o artigo 146 se volta para decisões decorrentes do controle de constitucionalidade e não o artigo 13, IX, que fala da possibilidade do voto de qualidade do presidente. Até porque o próprio artigo 13, IX, diz só ser aplicável em casos em que o Regimento não disciplinar o que não ocorre com os julgamentos de controle de constitucionalidade.

A redação do artigo 146 gera inúmeras controvérsias. Se for feita uma leitura ao pé da letra certamente teremos contradições. É que, no caso da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) o que se pede é exatamente a declaração de constitucionalidade da lei ou ato normativo. Em caso de empate, a solução contrária à pretendida seria a declaração de inconstitucionalidade que operar-se-ia sem o quórum de maioria absoluta exigido pela Constituição Federal.

Logo, a interpretação a ser dada deve ser no sentido de que nenhuma lei ou ato normativo jamais será declarado inconstitucional senão pela maioria absoluta da Corte, e, caso haja empate em qualquer que seja a ação, não teremos maioria absoluta formada, logo, a lei ou ato normativo questionado permanece no ordenamento.

Na hipótese acima, contudo, a decisão quanto à lei ou ato normativo não se revestiria da chamada eficácia vinculante, ou seja, posteriormente, havendo mudança na composição do Tribunal, o questionamento poderia ser feito novamente, uma vez que possivelmente a situação anterior, qual seja, ausência de quórum para formar maioria absoluta seja no sentido da declaração de constitucionalidade, seja no sentido da inconstitucionalidade.

No julgamento da Ação Penal 133/PR, o STF se viu diante de uma saia justa que trouxe à tona a aplicabilidade do mencionado artigo 146. O Tribunal debatia se condenava, ou não, um político acusado da prática de um crime. Como o ministro Eros Grau estava justificadamente ausente, a Corte teria de esperar o seu retorno para o desfecho do caso. Contudo, quando o ministro retornasse, o suposto crime estaria prescrito.

A ministra Ellen Gracie propôs aplicação da Emenda rejeitando-se a denúncia na esteira do que diz a parte final do artigo que diz considerar julgada a questão proclamando-se a solução contrária à pretendida. Como o que se queria era a condenação do político, a solução contrária seria a sua absolvição. Esta foi a proposta da ministra Ellen. Contudo, a Corte rejeitou a proposta e preferiu aguardar o ministro Eros Grau.

O autor Tedesco Ernest Friesenhahn (In La Giurisdizionale nella Repubblica Federale Tedesca. Ristampa, Milano: Dott. A. Guiffrè, 1973, p. 140, n. 13) discorrendo sobre disposição idêntica ao artigo 146 usada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão afirma que havendo número idêntico de votos, não cabe ao presidente o desempate, mas a rejeição do pedido. Neste ponto ele faz o alerta de que o dispositivo pode levar a resultado impossível, porque a solução da lide poderia depender da forma positiva ou negativa do pedido. Assim, em caso de paridade de votos, tal como foi ajuizado o pedido, não pode ser declarada uma violação da Lei Fundamental ou de outro direito federal.

Essa parece ser a linha que deve ser adotada pelo STF. Em se tratando de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo não há que se falar em voto de qualidade do Presidente. Não há essa possibilidade como acontece, por exemplo, na Suprema Corte Italiana. Assim, no STF, havendo empate em casos dessa natureza prevalece a máxima “one man, one vote”, ou seja, o voto do presidente vale exatamente tanto quanto vale o voto dos seus pares.

*Advogado Constitucionalista, professor de Direito Constitucional do IESB e autor do livro “Controle de Constitucionalidade Moderno”.