A importância do assistente de acusação na apuração dos crimes contra a dignidade sexual

O presente artigo visa demonstrar a importância atribuída ao assistente de acusação na apuração dos crimes contra a dignidade sexual, com as mudanças trazidas pelas Leis nºs 11.719, de 20 junho de 2008 e 12.015, de 7 de agosto de 2009, que modificaram, respectivamente, o Código de Processo Penal e o Código Penal Brasileiros.

Inicialmente, porém, deve-se registrar, ainda que en passant, a existência de algumas controvérsias na seara jurídica ligadas ao instituto da assistência de acusação, havendo, inclusive, posicionamentos doutrinários que sustentam a sua inconstitucionalidade no nosso sistema processual penal contemporâneo.

Todavia, o presente ensaio não tenciona levar a discussão a esse nível, haja vista que a doutrina brasileira, bem como a jurisprudência dos nossos Tribunais consagram, de forma unânime, a presença viva desse instituto no ordenamento jurídico pátrio.

Nesse sentido, é consabido no âmbito jurídico-penal que nos crimes de ação penal pública, ou seja, naqueles em que a titularidade da ação compete ao Ministério Público, poderá o ofendido ou seu representante legal, se menor de 18 anos, ou, no caso de ausência ou morte, qualquer das pessoas mencionadas no art. 31 do CPP, ingressar no processo mediante a admissão como assistente de acusação nos termos do artigo 268 usque 273 deste diploma legal.

Entretanto, tal legitimação não dispensa a capacidade postulatória, definida como a aptidão técnica para postular em juízo, prerrogativa exclusiva do advogado, assim considerado o bacharel em direito com inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, após aprovação no Exame de Ordem, visto que com a Magna Carta de 1988¹ o advogado passou a ser reconhecido como indispensável à administração da Justiça, sendo que no seu ministério privado presta serviço público e exerce função social, e no processo judicial colabora na postulação de decisão favorável ao seu constituinte e ao convencimento do julgador, consistindo os seus atos num verdadeiro múnus público (art. 133 da CF c/c o art. 2º, §§ 1º, 2º e 3°, da Lei nº 8.906/94 (EAOAB).

Por conseguinte, estando o assistente de acusação devidamente representado em juízo por um advogado, com instrumento procuratório específico incluso, poderá atuar em todos os termos do processo, sempre depois do promotor de justiça, com amplos poderes para propor meios de prova, fazer perguntas às testemunhas, participar dos debates orais, requerer diligências, e até mesmo recorrer quando necessário, geralmente, após transitar em julgado a sentença ou decisão para o titular da pretensão punitiva².

Na realidade, o interesse do ofendido em se habilitar como assistente, por meio de advogado, se justifica pelo fato de, na qualidade de vítima atingida diretamente pela conduta ilícita apurada no processo, ser o titular do bem jurídico lesado, podendo, deste modo, intervir para ajudar, assistir e auxiliar o Ministério Público na averiguação da verdade substancial, bem assim garantir seus interesses em relação à indenização civil decorrente dos danos produzidos pelo crime, que ocorrerá, normalmente, a partir da sentença penal condenatória.

Vê-se, dessa maneira, que o assistente de acusação tem relevante

papel participativo na persecução penal, exercendo, nesse ponto, um direito de ação, sem ter, necessariamente, a obrigação de interferir. No entanto, se assim proceder, terá o direito de deduzir a sua pretensão condenatória contra o acusado em busca da escorreita distribuição da justiça penal e reparação civil dos danos gerados pelo crime.

Nessa ordem de ideias, sem descurar da importante participação do assistente nos demais crimes de ação penal pública, deve-se lembrar que a sua função participativa tem maior relevância nos crimes contra a dignidade sexual, pois, em face da substituição da expressão “Dos Crimes Contra os Costumes” para “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”, operada pela Lei nº 12.015/2009, alterou-se, também, o foco da proteção jurídica, que antes eram apenas os hábitos e a moral da sociedade, incluiu-se, outrossim, a dignidade sexual do indivíduo³. Assim, ao tratar a lei penal de crimes contra a “dignidade sexual”, resta clara a intenção de proteger a dignidade da pessoa humana, a sua liberdade e intangibilidade sexual, além do completo e saudável desenvolvimento da personalidade, no que tange à sexualidade do ser humano.

Não obstante, o que se protege no aspecto sexual não é apenas a dignidade do ser humano, mas também a sua liberdade e integridade física e moral, sua vida e sua honra, bens jurídicos tutelados nos crimes contra a dignidade sexual, variando segundo o tipo penal violado. Além disso, busca-se também a proteção da moralidade pública sexual, cujos padrões devem pautar a conduta das pessoas, preservando-se outros valores igualmente importantes para a sociedade.

No entanto, como dito, o bem jurídico essencialmente protegido nesses delitos é, sem sombra dúvida, a dignidade sexual, de onde deflue a honra – objetiva e subjetiva -, ou seja, protege-se não só a reputação do indivíduo no meio social, mas também o seu sentimento de dignidade e respeito próprio.

Com efeito, a tutela da dignidade sexual emana do princípio da dignidade do ser humano, postulado supremo do direito pátrio, previsto no artigo 1º, inciso III, da CF/88¹, in litteris:“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana;”

Nesse contexto, pode-se afirmar que o princípio da dignidade humana, consagrado pela Carta Magna como valor cardeal para o alicerce da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, constitui um referencial unificador dos direitos fundamentais objetivando resguardar o bem-estar das pessoas no ambiente social, protegendo-as de quaisquer agressões à sua personalidade.

Sendo assim, como valor universal e inerente ao ser humano, a sua normatização transcende os limites territoriais, passando a ser um postulado do Direito Internacional, tendo como principal documento a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao dispor em seu artigo 1º que: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Da mesma forma, a tutela da dignidade humana se encontra consagrada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de dezembro de 1969, do qual o Brasil é signatário, cujo artigo 11 dispõe: “1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.”

Nesse diapasão, estabelece o artigo 5º, inciso X, da nossa Lei Maior¹, in verbis: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”

Conclui-se, destarte, que em todas as esferas da vida em sociedade, independentemente de tipificação explicita, quando houver violação a qualquer dos bens jurídicos garantidos pelo princípio da dignidade humana, deverá este fato ser objeto de reparação, com a imposição da sanção correspondente, na maioria dos casos, por compensação pecuniária, mediante solicitação expressa do ofendido ou representante legal tecnicamente habilitado.

Sobre esse aspecto, deve-se destacar que antes da reforma do CPP, realizada pela Lei nº 11.719/2008, que modificou sensivelmente os procedimentos previstos na legislação processual penal, havia duas formas básicas para o ofendido, vítima de um delito, pleitear a reparação civil, quais sejam: podia esperar o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para requerer-lhe a liquidação e posterior execução ou, então, promover, imediatamente, mesmo que pendente o processo criminal, uma ação de cognição, isto é, a conhecida actio civilis ex delicto ² (arts. 63 e 64 do CPP).

Porém, com a modificação operada pela referida lei, inobstante a manutenção dessas duas alternativas para o ofendido conseguir a reparação civil, atribuiu-se ao juiz criminal a competência cumulativa para fixação de indenização em decorrência dos danos materiais e/ou morais gerados pela infração4. Para tanto, o legislador introduziu o parágrafo único no art. 63 do CPP, dispondo que: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.”

Em seguida, tratando da sentença condenatória, inseriu o inciso IV no art. 387 do CPP, que diz: “fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Contudo, esqueceu de mencionar o rito processual a ser utilizado para averiguação do aludido valor indenizatório, bem como quem teria legitimidade para requerer a reparação dos danos causados pelo crime, indicando unicamente um valor mínimo, quando, na verdade, poderia ter inserido expressamente a possibilidade de arbitramento do valor total da indenização.

Diante dessas omissões, surgiram dúvidas por parte da comunidade jurídica quanto à aplicação desse dispositivo legal sem violação de outras normas jurídicas, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência pátrias vêm construindo orientações para esses problemas, afirmando que na hipótese de indenização à vítima, não há cogitar-se de condenação do réu a indenizar prejuízos sofridos pelo ofendido sem que este tenha formulado pedido explícito, pois, a fixação de indenização civil ex officio na decisão criminal condenatória, sem o respectivo debate entre as partes, fere frontalmente os princípios do contraditório e da ampla defesa, já que o réu tem direito de se defender tanto no tocante à questão penal quanto à civil4. Alertam, ademais, que a interpretação do art. 387, inciso IV, do CPP, deve ser harmonizada com o princípio da necessidade da demanda, consubstanciado no brocardo latino ne procedat judex ex officio, segundo o qual o juiz não pode condenar de ofício, ou seja, sem provocação. Aliás, esse é o entendimento jurisprudencial que vem se firmando no egrégio TJDFT5, in verbis: “2. A indenização dos danos causados à vítima deve ser excluída quando não haja pedido expresso do interessado, nem submissão do tema ao contraditório e à ampla defesa, haja vista o princípio da inércia da jurisdição.”

Em regra, tratando-se de ações penais exclusivamente privadas não há qualquer obstáculo processual, uma vez que o pleito indenizatório pode ser deduzido ordinariamente pela vítima ou representante legal, com a apresentação da petição inicial acusatória, pois, sendo o ofendido o próprio titular da ação, também tem legitimidade para requerer a indenização. Os problemas surgem no campo das ações penais públicas, por ser o Ministério Público o dominus litis, ensejando as seguintes indagações: Quem teria legitimidade e capacidade postulatória para formular o pedido de indenização em favor da vítima ou ofendido? E, em se tratando de ofendido economicamente hipossuficiente, a quem caberia essa incumbência? Qual, enfim, o procedimento adequado a ser adotado para apuração do valor indenizatório?

Consultando a legislação, doutrina e jurisprudência sobre o assunto, devido à escassez de obras a respeito, em virtude, talvez, da novidade do tema, não encontramos soluções precisas para essas questões. Todavia, partindo da leitura atenta e incansável dessas fontes de direito, aliada à nossa modesta experiência jurídica, construímos algumas sugestões visando contribuir para amenizar tais dificuldades.

Nesse desiderato, diante do princípio da inércia que caracteriza a jurisdição, concluímos que o pedido de reparação por danos, na espécie, exige, realmente, um autor legitimado e com capacidade técnica-formal para fazê-lo. Logo, inexistindo requerimento expresso por parte do ofendido ou representante legal (pai, mãe, tutor ou curador), ou mesmo de seus herdeiros (art. 31-CPP), ostentando esses requisitos, não caberá ao juiz criminal arbitrar qualquer indenização.

Assim sendo, resta ao ofendido ou representante legal, devidamente identificado nos autos, habilitar-se como assistente de acusação, por intermédio de advogado, para somente assim, formular o pedido indenizatório.

Por outro lado, em se tratando de ofendido pobre na forma da lei, essa iniciativa compete à Defensoria Pública, tendo em vista o disposto no artigo 134 da CF/88¹, que a consagrou como instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. Ao lado disso, a Lei Complementar nº 80/94, alterada pela LC nº 132/2009, que organizou a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, aliada à Lei Federal nº 8.906/94, faculta esse mesmo entendimento.

De outro modo, nas comarcas onde não existe Defensoria Pública estruturada, o ideal é que o juiz nomeie advogado dativo para tal fim, pois a atribuição delegada ao Ministério Público pelo artigo 68 do CPP, como modalidade de assistência judiciária gratuita, não encontra mais inteiro amparo no atual sistema constitucional brasileiro.

Em verdade, consoante se extrai da melhor doutrina e entendimento do Pretório Excelso, esse órgão ministerial não detém mais, como antes, legitimidade plena para postular indenização civil em favor do ofendido, visto que a sua atuação encontra-se limitada ao campo dos direitos sociais e individuais indisponíveis, ao passo que o interesse do ofendido, no caso, tem natureza nitidamente individual e disponível (vide arts. 127 a 129 da CF/88¹).

Evidentemente, como exceção, e diante da inconstitucionalidade progressiva do artigo 68 do CPP declarada pelo Supremo Tribunal Federal6, pode admitir-se, sendo o ofendido pobre nos termos da lei e não existindo Defensoria Pública na comarca, nem tampouco advogado disponível à assistência judiciária dativa, que o membro do Parquet, havendo prévio requerimento do ofendido, o substitua processualmente no pleito indenizatório. Nos demais casos, respeitando as doutas opiniões doutrinárias e decisões judiciais em sentido contrário, entendemos que tal pretensão exorbitaria o âmbito de sua atribuição.

Verifica-se, portanto, que a única forma viável para se dar cumprimento ao novel dispositivo legal (art. 387, IV, CPP) é haver solicitação expressa feita pela vítima ou representante legal, por meio de assistente de acusação admitido nos autos e com capacidade técnica para peticionar em juízo, cuja legitimidade deriva da nova lei, mesmo que implicitamente4.

A partir daí, com base nos princípios constitucionais da celeridade processual e da razoável duração do processo, previstos no art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88¹, intima-se o réu para tomar ciência do pedido indenizatório e apresentar, querendo, nos próprios autos, a defesa que entender pertinente, devendo-se, contudo, evitar a discussão de questão complexa e de alta indagação nesta esfera criminal, sob pena de obstar a condenação do réu nesse sentido.

Dessa forma, tendo em vista o novo redimensionamento dos bens jurídicos tutelados nos delitos sexuais, protegendo-se essencialmente a dignidade sexual da vítima, a participação do assistente de acusação, por meio de causídico, no deslindamento desses crimes hediondos (estupros), que causam sequelas físicas e psicológicas, na maioria das vezes, irreversíveis, torna-se imprescindível, na medida em que assiste e auxilia o órgão acusador oficial na busca da correta aplicação da norma penal ao caso concreto.

Ademais, conforme já explicitado, após a reforma implementada pela lei supracitada, que alterou o inciso IV do art. 387 e introduziu o parágrafo único no art. 63, ambos do CPP, mais importância ganhou a figura do assistente de acusação, visto que a intervenção do Ministério Público, na hipótese, se restringe à área de aplicação da lei penal, ao passo que o assistente, além de colaborar com a Justiça, velando pelo bom andamento e desfecho positivo da ação penal, preocupa-se, ainda, em defender seus interesses reflexos, na ânsia de obter uma justa reparação civil, de modo a atenuar as dores e sofrimentos morais experimentados em decorrência da ação delituosa.

Ante o exposto, levando-se em consideração que a prática dessas condutas criminosas, principalmente na modalidade de estupro de vulnerável, cresce assustadoramente em nosso país, motivada, quiçá, pela pedofilia; considerando, ainda, que tais crimes sexuais deixam cicatrizes profundas, sobretudo, em crianças e adolescentes, causando danos irreparáveis à vítima, recomenda-se às pessoas direta ou indiretamente afetadas que intervenham sempre no processo, habilitando-se como assistente de acusação, por advogado legalmente constituído, a fim de melhor assegurar a exata aplicação da lei penal e garantir a devida reparação civil dos danos causados pelo delito.

NOTAS
1.SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 7ª edição, SP: Malheiros, 2010.
2.CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18ª edição, SP: Saraiva, 2011, p. 209/249.
3.JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – volume 3 – Parte Especial, 19ª edição, SP: Saraiva, 2010, p.121/223.
4.NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, rev. atual e ampl. SP: RT-2011, p.192/195 e 734//741.
5.TJDFT – APR2009011051935-8, Acórdão nº 529486, Rel. Des. George Lopes Leite, 1ª Turma Criminal, julgado em 29/06/2011, DJ-e: 24/08/2011, pág. 15 8).
6.STF-RE 341.717/SP, Rel. Min. Celso de Melo.

JOAQUIM DE CAMPOS MARTINS é Advogado. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); Pós-Graduado pela Escola da Magistratura do DF; Autor do livro Manual da Legislação Específica do TJDFT e de artigos jurídicos publicados em jornais, revistas e informativos especializados.