Por Bruno Dantas*
O projeto do novo Código de Processo Civil (CPC) em tramitação na Câmara dos Deputados tem oportunizado à sociedade brasileira mergulhar nos debates em torno da busca de caminhos capazes de atenuar a crise que se abate sobre o nosso Poder Judiciário, apontado diuturnamente como ineficiente e moroso. Como toda obra humana, o projeto contém defeitos e virtudes que vêm sendo apontados nas audiências públicas realizadas pelo Parlamento.
Diversas críticas são procedentes e advêm de estudiosos, práticos e leigos que se preocupam com o aperfeiçoamento da legislação e das instituições. Outras, porém, percorrem a trilha sinuosa das falácias e, para prevalecer, apostam na desinformação geral.
Legou-nos Arthur Schopenhauer importante estudo sobre a dialética erística, que é a arte de discutir de modo a vencer, seja por meios lícitos ou ilícitos. No livro “Como vencer um debate sem precisar ter razão”, o filósofo alemão discorre sobre trinta e oito estratagemas que podem orientar a dialética, qualificada por ele como uma esgrima intelectual com o objetivo de vencer uma controvérsia.
Dentre esses estratagemas, sobressai o chamado argumentum ad auditores, utilizado geralmente quando se discute um assunto altamente técnico perante um público não-iniciado. Em casos assim, ensina Schopenhauer, basta formular “uma objeção inválida, mas cuja invalidade só um conhecedor do assunto pode captar. E, ainda que o adversário seja um conhecedor do assunto, não o são os ouvintes”.
Recentemente, uma grande revista de circulação nacional veiculou entrevista na qual, ao lado de algumas poucas críticas legítimas e fundadas, o entrevistado optou por enveredar-se na senda tortuosa das falácias, expressando meias verdades, quando não inverdades inteiras, na crença de que atingiria público não iniciado em Direito, e menos ainda em direito processual civil.
Apenas com o intuito de trazer elementos para que as pessoas formem seu convencimento à luz de informações menos parciais, destacaremos dois mitos que se tem pretendido construir à base de argumentos falaciosos.
“O único problema da Justiça brasileira é a falta de orçamento suficiente para contratação de mais juízes e serventuários”.
Trata-se de meia-verdade, pois a superação da crise de nosso Poder Judiciário depende de ações simultâneas em três frentes distintas: i) ampliação do orçamento; ii) melhor gestão dos tribunais e varas judiciais; e iii) lei processual mais racional. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que isoladamente as duas primeiras são insuficientes para resolver o problema da morosidade.
O relatório “Justiça em Números” do CNJ nos mostra que em 2010 o orçamento da Justiça Estadual teve o expressivo aumento de 7% em comparação com 2009, saltando de R$ 22,3 bilhões para R$ 23,9 bilhões. Não obstante isso, a taxa de congestionamento na fase de conhecimento em 1º grau cresceu 4%, passando de 56% para 60%.
Sendo mais claro: enquanto o orçamento do Judiciário cresceu acima da inflação e do PIB nacional, a quantidade de processos encerrados em 2010 diminuiu em relação a 2009, alcançando a marca alarmante de 60% remanescentes em estoque de um ano para o outro.
Numa perspectiva econômica, é fácil perceber que não desejam qualquer mudança aqueles que insistem em defender como único caminho a mera ampliação do orçamento da Justiça brasileira a patamares praticados em países desenvolvidos.
Ao mirar algo inexeqüível no curto e no médio prazo, apostam que tudo permanecerá como está, pois ante as limitações orçamentárias experimentadas pelo Brasil, tal aumento pressuporia incremento substancial da carga tributária suportada pelo contribuinte, o que, evidentemente, inviabiliza sua operacionalização.
Isso sem falar que devido à baixa qualidade do ensino jurídico no Brasil e à elevada qualificação técnica exigida dos juízes, se tornou extremamente comum concursos para a magistratura terem pouquíssimos aprovados. Assim, onde recrutaríamos instantaneamente mil ou dois mil novos juízes, sem comprometer a qualidade da atividade jurisdicional?
“O projeto concede ‘super poderes’ aos juízes de primeiro grau por eliminar o agravo retido e o efeito suspensivo da apelação”
Trata-se de inverdade completa.
Primeiro, é incorreto falar que o projeto suprime o agravo retido, sem mencionar que juntamente com ele desaparecerão as situações em que hoje é cabível, tornando-o, portanto, desnecessário. Isso se deu mediante a mitigação do atual regime de preclusões, que permitirá à parte prejudicada apresentar, junto com a apelação, toda a sua irresignação acumulada durante o trâmite do processo em primeiro grau.
Esse modelo substituiria o atual, em que cada discordância gera um agravo retido a deflagrar inutilmente um micro-procedimento incidental que somente será julgado junto com a eventual apelação, postergando a decisão final.
Segundo, quanto à apelação, o projeto transforma o atual efeito suspensivo ope legis em ope iudicis, à semelhança do que ocorre hoje com o agravo de instrumento, no qual é o relator no tribunal, à vista do caso concreto, e não a lei em abstrato, quem concede ou denega o efeito suspensivo.
Como o juízo de admissibilidade da apelação passaria a ser realizado diretamente pelo tribunal ad quem, e não pelo juízo inferior, não haveria retardamento na remessa dos autos e exame de eventual pedido de efeito suspensivo, o que, em caso de indeferimento, anteciparia em muito o início da execução provisória, prestigiando o autor que tem razão. Com isso, perde o réu contumaz, que detém hoje a apelação como instrumento fácil e gratuito de postergação do cumprimento de suas obrigações.
Ademais, para que o debate seja estabelecido em bases racionais, não se pode ocultar que no sistema vigente as tutelas de urgência, concedidas em cognição sumária, isto é sem maior aprofundamento, já comportam execução provisória. O que, então, justificaria que uma sentença, proferida após o amplo exercício do direito de defesa, possua menos valor que uma decisão interlocutória? Trata-se de um paradoxo do sistema atual que precisa ser analisado sem paixões.
Não obstante essas falácias que investem na desinformação para convencer (ou atemorizar) o grande público, inúmeras críticas fundadas em preocupações legítimas e razoáveis têm sido veiculadas, o que é fundamental para se chegar ao melhor texto para o País.
Essas contribuições têm recebido enorme atenção do presidente e do relator-geral da Comissão Especial que analisa o projeto do novo CPC, deputados Fábio Trad e Sergio Barradas Carneiro, demonstração eloqüente da vocação democrata de ambos, e do elevado espírito público que possuem.
*Bruno Dantas é conselheiro do CNJ, mestre e doutorando em Direito Processual Civil (PUC-SP).
Observação: Como se trata de opinião pessoal, o texto não reflete necessariamente apurações ou argumentos da OAB/DF.