Brasília, 09/08/2011 – Em pouco mais de dois anos de inspeções realizadas nos estados, o Conselho Nacional de Justiça descobriu que desvios de verbas, vendas de sentenças, contratos irregulares, nepotismo e favorecimento na liberação de precatórios são problemas que acontecem no Judiciário de todas as regiões do país, conforme conta série de reportagens especiais de Juliano Basile e Maíra Magro, do Valor Econômico. Em apuração que durou mais de quatro meses, a reportagem constatou que há desde tribunais que usam dinheiro público para contratar serviços de degustação do café tomado pelos juízes, como no Espírito Santo, até saques de milhões em sentenças negociadas pelos próprios magistrados, a exemplo do Maranhão, que chegou a penhorar R$ 1,9 milhão.
Entrevistado pelo Valor, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, disse que os magistrados que cometem irregularidades devem ser punidos, mas sem estardalhaço. Ele se disse indignado com as infrações cometidas, mas defendeu sigilo nas investigações. Se o nome dos investigados for divulgado antes da conclusão das apurações, haveria um pré-julgamento, na opinião de Peluso (leia no final do texto a entrevista na íntegra).
Para o ministro, o sigilo nas investigações é uma forma de respeitar a intimidade e a dignidade das pessoas. O resultado pode se tornar público, afirma. “Usar o procedimento de apuração e a punição dos juízes para criar uma comoção me parece absolutamente injustificado e contrário à dignidade das pessoas. Se réu a gente tem que tratar bem, por que os juízes têm que sofrer um processo de exposição pública maior que os outros? O interesse da sociedade é que os juízes sejam punidos, ponto final”, declarou.
Questionado sobre os desvios cometidos por juízes, respondeu que estes também são seres humanos, sujeitos a falhas. No entanto, defende que o juiz deve ser um modelo para a sociedade.
Falha humana
A reportagem do Valor revelou casos de desvios nos tribunais. Enquanto no Espírito Santo, o CNJ encontrou servidores exonerados que ainda recebiam 13º salário, no Ceará o Tribunal de Justiça contratou advogados para trabalhar nos gabinetes dos desembargadores. Em Fortaleza, ao menos 21 profissionais liberais estavam contratados pelo TJ. Já em Mato Grosso, dois juízes foram aposentados depois de desviar R$ 1,5 milhão para cobrir prejuízos de uma loja maçônica. Houve ainda o caso da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região (Ajufer), no Distrito Federal. Um dos juízes usava o nome de outros juízes para fazer empréstimos bancários para a entidade. Sem saber, juízes se endividaram em centenas de milhares de reais.
Das 3,5 mil investigações em curso no CNJ, pelo menos 630 envolvem magistrados. Entre abril de 2008 até dezembro de 2010, o Conselho condenou juízes em 45 oportunidades. Em 21 deles, foi aplicada a pena máxima: o juiz é aposentado, mas recebe salário integral. Simplesmente para de trabalhar.
Investigações deficientes
A apuração de desvios cometidos por juízes é função das corregedorias dos tribunais. Mas, como são formadas pelos próprios desembargadores, elas nem sempre funcionam. O CNJ revela que, desde outubro de 2008, em diversos estados os processos contra juízes demoram e muitos acabam arquivados por decurso de prazo. Alguns passam de mão em mão até prescrever, e outros levam anos no gabinete de um só desembargador, como noticia reportagem do Valor Econômico.
No Ceará, por exemplo, um processo foi aberto em 2002 e arquivado sete anos depois sem que nenhum dos responsáveis pela apuração tivesse se manifestado. Em 2005, estava pronto para ser julgado, mas foi redistribuído para outro relator. Ficou parado até 2009, quando prescreveu.
Em Manaus, o CNJ descobriu que os autos de uma sindicância envolvendo acusação de fraude na distribuição de processos foram furtados. O Conselho também encontrou processos disciplinares parados por mais de dois anos no gabinete da Presidência, além de dezenas na Corregedoria-Geral de Justiça. Algumas representações estavam nas mãos de desembargadores já aposentados.
A maioria dos tribunais acusados de irregularidades pelo CNJ, porém, disse já trabalhar para sanar os desvios. O TJ do Espírito Santo afirma que já cancelou o contrato para degustação de café e resolveu os casos de nepotismo.
O presidente do TJ-AL, que assumiu em fevereiro, disse que o pagamento de diárias a juízes está sendo amortizado “rigorosamente dentro dos critérios legais”. O TJ maranhense contou que já resolveu os problemas da tramitação lenta dos processos administrativos contra juízes. As sindicâncias agora são encaminhadas ao pleno.
A seguir, leia a entrevista do ministro Cezar Peluso ao Valor Econômico:
Valor: Como o senhor acha que deve ser combatida a corrupção no Judiciário?
Cezar Peluso: A primeira coisa que devemos ressaltar é que temos que ter paciência para enfrentar isso. Eu gostaria de desfazer essa tentativa preconceituosa de dizer que, como presidente do CNJ, eu ia assumir uma atitude corporativista para evitar a apuração das irregularidades. Preciso historiar um pouco a minha vida pra mostrar como isso é uma falsidade grosseira. Fui juiz da Corregedoria em São Paulo durante dois anos, e fui escolhido por um corregedor que nunca tinha me visto na vida. Eu era encarregado na Corregedoria de cuidar de processos disciplinares contra magistrados. Nós pusemos dez juízes fora da magistratura em dois anos, dois dos quais foram condenados criminalmente, coisa raríssima na história da magistratura do país. Um deles cumpriu pena longa. No fim acabou cometendo um segundo crime que não tinha nada com o exercício da função. Todos esses processos foram preparados por mim.
Valor: E mais recentemente o senhor se deparou com casos de irregularidades na Justiça?
Peluso: Eu fui o relator do inquérito que resultou no recebimento da denúncia contra integrantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de tribunais do Rio de Janeiro e de Campinas (caso envolvendo supostas vendas de sentenças). Processei durante um ano, sigilosamente. Nem os ministros do STF souberam. Esse caso serviu, depois, como base para a decisão do CNJ, que aposentou compulsoriamente magistrados [entre eles, o então ministro do STJ, Paulo Medina]. O CNJ pegou o inquérito e simplesmente aplicou a pena. Usou a prova do processo que eu presidi. Então, essa conversa de que eu sou contra punir juízes é uma conversa fiada e tem interesses ocultos de querer me inibir de tomar posições que eu acho corretas.
Valor: Como o senhor vê desvios cometidos por magistrados?
Peluso: Eu não suporto, como qualquer magistrado responsável, infrações disciplinares de juízes. Eu acho que o juiz tem que ser um modelo. É claro que o juiz é ser humano como qualquer outro. Portanto, estão sujeitos às mesmas falhas, aos mesmos desvios. Mas do ponto de vista ético, a exigência é de o juiz ser o mais perfeito possível. Se ele cometeu desvio, tem que ser punido. Agora, apurar procedimentos irregulares de juízes e punir é uma coisa. Usar o procedimento de apuração e a punição dos juízes para criar uma comoção me parece absolutamente injustificado e contrário à dignidade das pessoas. Se réu a gente tem que tratar bem, por que os juízes têm que sofrer um processo de exposição pública maior que os outros? O interesse da sociedade é que os juízes sejam punidos, ponto final. Se a punição foi aplicada de um modo reservado, apurada sem estardalhaço, o que interessa para a sociedade? A sociedade sabe do resultado, sabe que não há impunidade, e que o sistema pune, acabou.
Valor: O senhor acha que a apuração de irregularidades por juízes deve ser feita de maneira secreta?
Peluso: Eu tenho um ponto de vista pessoal baseado em dois dispositivos da Constituição: o artigo 5º e o 93º. Ambos dizem que, em determinados casos, para respeitar a intimidade e a dignidade das pessoas, as decisões podem ser tomadas reservadamente. Depois, se torna público o resultado.
Valor: Durante a investigação o nome do juiz deve ser protegido?
Peluso: O ministro Ari Pargendler, presidente do STJ, me falou que a abertura de um processo contra um juiz, ainda que ele seja absolutamente inocente, acaba com a carreira e com o exercício da função. Esse juiz fica marcado para o resto da vida. Ainda que, depois, se decida que ele era absolutamente inocente e que o procedimento foi absolutamente injustificado, a imagem dele estaria liquidada. Isso não é bom pra ele, porque não há nada no mundo que restitua a condição anterior. E não é bom para a sociedade, porque traz a ideia de que a Justiça é um organismo constituído de pessoas sem a mínima ética, o que não é verdade.
Valor: Mas, a Justiça pune os seus juízes?
Peluso: Eu falei, numa das minhas manifestações, no Rio de Janeiro, sobre quantos casos o CNJ puniu. Foram mais ou menos 40 casos, em dois anos. Alguns foram aposentadorias compulsórias; outros foram aplicações de penas de censura. A pergunta é: o que representa, no universo dos juízes, 40 casos? Nós podemos até multiplicar isso. Vamos dizer que hoje, no Brasil, existam 300 casos absolutamente censuráveis de comportamento de magistrados. O que representa isso nesse universo de 20 mil juízes?
Valor: Ao investigar juízes, o CNJ deve verificar o conteúdo das decisões que eles tomam?
Peluso: Eu acho que isso deve ser visto sob dois pontos de vista. Primeiro, do ponto de vista estritamente jurídico, nós temos, ao lado da competência do CNJ, a subsistência da autonomia dos tribunais. Ao lado da autonomia dos tribunais, nós temos o princípio federativo de respeito das esferas das competências dos Estados, portanto, dos órgãos do Judiciário estadual. Se eu disser que o CNJ pode, sem razão objetiva, assumir um processo que deveria ser conduzido originariamente pelos tribunais locais, eu estou dizendo que a autonomia já não é tão autonomia. O outro é o ponto de vista prático. São consequências desastrosas para o sistema. Sobrecarregar o CNJ com inúmeros processos é o de menos, é o menos relevante. Há queixas que chegam ao CNJ de tudo quanto é tipo. Eu já peguei queixa de advogado que disse que a decisão de um juiz era isso ou aquilo e, ao invés de entrar com um recurso, entrou com reclamação no CNJ contra o juiz. Esse é um aspecto ponderável, mas o mais importante é o seguinte: as corregedorias locais têm que exercer as funções delas. Se eu aprovo uma orientação de dispensar as corregedorias locais de cumprir o seu dever de apurar e punir as infrações disciplinares, eu vou introduzir uma cultura de negligência nas corregedorias. Porque as corregedorias, depois de certo tempo, vão dizer: “Por que eu vou me incomodar com isso? O CNJ é que cuide”. Segundo, vai convalidar a inércia das corregedorias. Na verdade, o papel do CNJ é também o de obrigar as corregedorias a exercer os seus deveres de apurar e punir as infrações. O CNJ tem que exigir que as corregedorias cumpram a função. Essa é a saída.
Valor: E quando elas não cumprirem as suas funções?
Peluso: Quando as corregedorias tomam conhecimento [de irregularidades] e se omitem, ou quando sabem que o fato aconteceu, mas não tomam nenhum conhecimento, ou mesmo quando tomam conhecimento e instauram procedimentos, só que apenas simulam que vão apurar, demoram, pedem prazo, levam a prescrições etc, aí, nesses casos, seria melhor que sejam apurados pelo CNJ. Nessas hipóteses, em que haja razões objetivas, aí, sim, o CNJ vai lá e assume. Em outras palavras, o CNJ vai atuar quando as corregedorias deixarem de exercer a sua função e, portanto, de cumprir o seu dever. E acho mais: o CNJ tem que fiscalizar a atuação das corregedorias para punir as que não cumprem suas funções.
Fonte – Conjur com informações do Jornal Valor Econômico