Por Antônio Carlos de Almeida Castro* e Marcelo Turbay Freiria*
Em 7 de abril deste ano, o Senado Federal aprovou o substitutivo ao Projeto de Lei 111, de 2008, da Câmara dos Deputados que, prosseguindo na implementação da reforma do Código de Processo Penal, altera dispositivos do referido diploma no que importa, principalmente, à prisão, medidas cautelares e liberdade.
O projeto, originariamente registrado como Projeto de Lei 4.208/2001, segue agora para sanção presidencial, criando um espaço extremamente fecundo, uma verdadeira convulsão intelectual sobre as mudanças que propõe, enquanto aguarda a chancela do Poder Executivo.
Nada mais natural, portanto, que surjam nesse momento toda sorte de comentários, críticas e elogios ao texto que está prestes a ganhar vida no dia-a-dia dos tribunais.
Um dos pontos altos da reforma, digno, aliás, das mais sinceras homenagens, diz respeito à enorme preocupação hoje existente no país em relação ao problema do crescimento da população carcerária, que traz, numa análise mais simplista, três principais pilares: 1) a exorbitante quantidade de presos provisórios que ocupam vagas no sistema penitenciário; 2) o fracasso da sistemática de progressão de regimes; 3) a lamentável cultura de recrudescimento da legislação penal no Brasil.
E tal aumento na população carcerária, como não podia deixar de ser, também provoca, dentre várias outras, três principais conseqüências: 1ª) o triste insucesso dos ingênuos propósitos de reeducação, ressocialização e reinserção do preso e do egresso; 2ª) a criação de ambiente propício ao desenvolvimento da criminalidade organizada dentro dos próprios estabelecimentos prisionais; 3ª) as rotineiras e graves ofensas aos direitos humanos.
Todos esses itens foram observados há anos e já há tantos outros vêm sendo sistematicamente discutidos. O Projeto de Lei 4.208/2001, por sua vez, chega como uma tentativa muito bem intencionada de atacar justamente um desses pilares do aumento do encarceramento e, por tabela, das mazelas que essa proporciona: a desproporcional quantidade de presos provisórios que habitam o sistema penitenciário.
Nesse aspecto, um artigo divulgado recentemente pelo jornal Valor Econômico, de autoria do desembargador Fausto De Sanctis, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, traz uma abordagem interessante sobre a reforma trazida no projeto de lei em questão e, sobretudo, o alcance e as consequências práticas que esse tende a provocar no Direito criminal brasileiro.
O desembargador, que até 2010 respondia pela 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, especializada em crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores, inicia o artigo atribuindo-lhe o seguinte título “A blindagem do crime econômico” e argumenta que a prisão provisória no Brasil ficará praticamente inaplicável, eis que o Projeto prevê a implementação de nove medidas que se propõem sempre anteriores à decretação da prisão.
Segue o autor trazendo exemplos de tipos penais que não admitirão essa hipótese de medida constritiva, como todos aqueles com pena máxima inferior a quatro anos e o desembargador faz questão de citar um rol exemplificativo que conta com vários delitos. Em conclusão, ainda faz questão de destacar que, dentre eles, situam-se a maior parte dos crimes econômicos e financeiros.
Essas as considerações, impossível não rememorar a exposição de motivos do Código de Processo Penal, igualmente editada em 1941, na qual o legislador esmerou-se em declarar a existência e vigência da chamada “prisão obrigatória”, para aqueles delitos cuja pena máxima fosse igual ou superior a dez anos. Tal instituto hoje se afigura como um verdadeiro acinte ao Estado Democrático de Direito, representando a máxima expressão da anti-democracia, da negação da presunção de inocência. A muito custo, no lavor diário e incansável da reafirmação da democracia e consolidação da Constituição Republicana de 1988, tal hipótese foi banida do direito brasileiro.
E já agora, passados sessenta anos do nascimento legal da prisão obrigatória, quando os tempos são radicalmente outros e a prisão constitui-se, cada dia mais, uma excepcionalidade, como de fato há de ser, algumas vozes ainda se levantam bradando pelo retorno dos grilhões, pela maximização do punitivismo, pelo recrudescimento da legislação penal, das hipóteses de prisão, provisórias ou definitivas.
Ora, na Europa — sobretudo em Portugal, Alemanha e Áustria — ganham força os movimentos de descriminalização de condutas, como o Direito de Mera Ordenação Social, que sustenta a administrativização das infrações penais, que passariam a ser ilícitos administrativos, punidos quase sempre com sanções pecuniárias.
No Brasil não se chega a tanto, mas é impossível não admitir como uma inovação extremamente salutar a implementação de medidas legais que necessariamente deverão anteceder a decretação de prisão preventiva, como vem trazer o Projeto de Lei 4.208/2001, digno dos mais sinceros e veementes aplausos.
A prisão agora sim começa a caminhar para seu devido lugar, rumo à excepcionalidade, à tão falada ultima ratio, cabível tão somente ante a falência de medidas outras, recém criadas, mas tão efetivas quanto e sem lançar os cidadãos às agruras do cárcere, sobretudo quando ainda não julgados, tampouco condenados em definitivo.
A luta pela dignidade humana, pelas condições mínimas de higiene, alimentação, saúde, que passa necessariamente pelo despovoamento das penitenciárias, tem como objeto principal a população mais humilde, que hoje representa percentual infinitamente maior do público carcerário. Logo, tais medidas previstas na reforma processual virão a beneficiar, obviamente, o criminoso comum, jamais aqueles afetos à criminalidade econômico e financeira, tal como quis fazer supor o Desembargador Fausto de Sanctis.
A tal “blindagem do crime econômico”, caso existisse, jamais poderia ser considerada como um reflexo da reforma constante do Projeto Lei 4.208/2001, jamais! Pois a prisão preventiva como hipótese restrita haverá de afetar, inegavelmente, um público que não é aquele característico da criminalidade econômica.
Ademais, impossível não destacar, a partir das considerações esposadas no referido artigo do dr. Fausto de Sanctis, que dos inúmeros delitos que trazem penas máximas inferiores a 04 (quatro) anos, a grande maioria certamente admitirá benefícios processuais como a transação penal, a suspensão condicional do processo ou a substituição de pena; assim, por coerência, jamais poderiam admitir a prisão preventiva.
Na verdade, a preocupação externada por De Sanctis desnuda o verdadeiro uso a que se tem dado à prisão preventiva nos dias de hoje. Dada a incapacidade do Poder Judiciário de encerrar os processos relativos a crimes econômicos e tantos outros, vitimados pela morosidade judiciária, a prisão provisória acaba se tornando um falso baluarte contra a seletividade do sistema penal.
Por fim, deve-se festejar as inovações trazidas no Projeto de Lei em questão, tidas como uma resposta ao exacerbado punitivismo, à falsa e maléfica noção de que o cárcere é a melhor resposta, qualquer que seja o delito, o público, quaisquer que sejam os valores envolvidos.
Se alguma blindagem há, é contra o injustificável aumento da população carcerária, contra as condições subhumanas nas quais são lançados diariamente homens e mulheres, sobretudo aqueles menos favorecidos economicamente.
E, no que importa à criminalidade econômica, talvez agora finalmente possamos assistir o fim dos lamentáveis espetáculos propagandísticos e midiáticos proporcionados pelas prisões, pelas algemas, pelas dezenas de policiais fortemente armados até os dentes nas deflagrações das grandes operações policiais, quando os grilhões jamais se prestam a garantir a integridade ou a segurança de quem quer que seja, pois se prestam exclusivamente a impor aos cidadãos, em rede nacional, a humilhação, a pecha de culpados àqueles que são, acima de tudo, presumivelmente inocentes, até que se prove o contrário.
Antônio Carlos de Almeida Castro é advogado criminalista
Marcelo Turbay Freiria é advogado.